Cruel Summer: romantização da violência?
- Débora Gauziski
- 12 de ago. de 2021
- 6 min de leitura
Sexta-feira estreou a série Cruel Summer na Amazon Prime. A série é original da rede de televisão Freeform e tem a produção da atriz Jessica Biel, que também produziu — a incrível — The Sinner (Netflix).
Ambientada numa cidade fictícia do Texas na década de 90, a série conta a história de Kate, uma adolescente de 16 anos que desaparece sem deixar vestígios. Kate é a menina rica, bonita e popular do colégio. A outra personagem principal da série, a tímida Jeanette Turner, passa por uma transformação depois do desaparecimento de Kate, mudando sua aparência e também se aproximando dos amigos e do namorado dela.
Fiz um vídeo no YouTube sobre a série. Se você preferir, você pode assistir esse conteúdo em vídeo (abaixo):
Eu fiquei muito interessada em assistir essa série por conta da ambientação nos anos 90 (seriam os 90 são os novos 80?) e também porque gosto muito de séries que têm cliffhangers, ou seja, reviravoltas na trama. Mas esse recurso dos turning points na narrativa acabaram estragando a série pra mim. Isso porque achei que alguns temas foram tratados de forma irresponsável. Vou falar primeiro sobre os pontos positivos de Cruel Summer para depois explicar por que não gostei muito da série. Atenção: a parte sobre os pontos negativos contém spoilers!
Pontos positivos de Cruel Summer:

Ambientação da década de 90:
A direção de arte da série apresenta vários elementos da época, como as roupas, os acessórios, a decoração das casas, os eletrônicos e outros ambientes nostálgicos, como videolocadoras — que não eram tão legais assim, mas, nós millenials (#cringe) romantizamos.
Trilha sonora da série:
Vários clássicos da minha adolescência roqueira, como Smashing Pumpkins, Oasis, Garbage, Cranberries e Pixies. Algumas das músicas que tocam na série são as versões originais, outras covers. Uma curiosidade é que o cover de “Creep” do Radiohead é cantado pela atriz que interpreta a Kate (Olivia Holt). Além de trazer parte da ambiência sonora da época, as músicas também se relacionam com o estado emocional dos personagens.
Edição + marcadores temporais:
Apesar de confusa em muitos momentos, a montagem da série, que tem diversos flashbacks, é bem interessante. A narrativa se passa em três anos: 1993 — que é o ano do desaparecimento da Kate — , 1994 e 1995. Para diferenciar os anos, há também diferenças na aparência dos personagens (cabelo, maquiagem, roupas) — especialmente no caso de Jeanette e Kate — e também nas cores da fotografia da série (eu analiso com mais profundidade essa questão no vídeo que postei no YouTube).
A série te prende:
A narrativa vai entregando pistas ao espectador, que vão gerando muita curiosidade. O interessante é que os primeiros episódios conseguem manter o mistério da série, já que não dá pra saber se a Kate está viva ou morta — e nem o que aconteceu com ela. Apesar da boa premissa, a narrativa da série também tem problemas (que achei bem graves, por sinal).
ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!

Pontos negativos de Cruel Summer:
A série romantiza o aliciamento de Kate:
Ao longo dos episódios, vão sendo mostradas várias mentiras que Jeanette contou para as pessoas. A ideia é causar dúvida para você não saber quem está dizendo a verdade. Por conta dessa dualidade dos discursos de Kate e de Jeanette, algumas pessoas compararam a série com a novela A Favorita (Rede Globo, 2008). Um clássico da TV brasileira.
Num dado momento da série, Kate “reaparece”. Ela havia sido sequestrada por Martin, o diretor assistente da escola. Um tempo depois, Kate revela em um programa de TV que Jeanette a viu dentro da casa de Martin quando estava sequestrada e não denunciou para a polícia.
Jeanette tinha a mania de entrar escondido na casa de Martin quando ele não estava presente. Ela tinha a chave da casa porque havia roubado da imobiliária da cidade, na qual seu pai trabalhava. Era uma espécie de ato de rebeldia da personagem. Então, ao longo da série, você fica com aquela dúvida: será que Jeanette realmente viu a Kate dentro da casa?
Com a denúncia de Kate, todos na cidade passam a odiar Jeanette. Inclusive, por ela ter mudado seu estilo e se aproximado dos amigos da Kate — e também ter começado a namorar seu ex-namorado — tudo leva a crer que ela fez isso de propósito para viver a vida de Kate, pela qual ela nutria certa obsessão. A vida de Jeanette se torna um inferno, e ela decide processar Kate.
O problema é que o principal vilão da série é Martin, não Jeanette. E a narrativa da série faz exatamente isso: vilanizar mais Jeanette (não que Jeanette seja uma boa pessoa…) do que o próprio Martin. E é aqui que está o problema.
Eu li alguns comentários na internet relativizando o que Martin fez. Um deles dizia que Martin era um cara legal, mas que ele e Kate “se conheceram no momento errado”. Não! O Martin é um aliciador de uma menor de idade. Esse comentário me assustou bastante.
Um dos grandes momentos da série é quando você descobre que Kate foi espontaneamente à casa de Martin após brigar com sua mãe. No início, Martin deixa ela ficar na casa dele e “cuida” dela. Só que quando a polícia começa a procurar a garota, ele diz para Kate que ela vai ter que ficar escondida por um tempo na casa porque se descobrirem que ela estava ali o tempo todo, ele seria preso e perderia o emprego. Sendo que, logo no primeiro momento, ele deveria ter telefonado para os pais da garota e avisado o que aconteceu (um profissional da educação, que trabalha com crianças ou adolescentes, também é responsável por eles fora da escola).
Kate aceita ficar escondida na casa dele e, com o passar do tempo, ela e Martin acabam desenvolvendo um relacionamento amoroso. Esse aspecto é mal explicado pela série, pois não se sabe se os dois também se relacionam sexualmente — só lembrando que Kate tem 16 anos e Martin uns 30 e poucos (não sabemos a idade dele). Num dado momento, quando Kate decide voltar para casa, Martin a tranca no porão da casa.
Até aqui, além do aliciamento de uma menor de idade, Martin cometeu os crimes de sequestro e depois de cárcere privado.
Acredito que muitas pessoas tenham romantizado o “relacionamento” deles dois porque no início tudo “parecia estar bem”. Só que não estava tudo bem. Apesar de Martin comprar as comidas que Kate gostava e levar presentes para ela, ainda assim estava privando a adolescente de sua liberdade. Algumas pessoas vão dizer “Mas ela estava livre para ir embora, já que não estava presa antes”. Bom, a série fala justamente sobre a Síndrome de Estocolmo, que é
“um transtorno psicológico que pode acontecer em pessoas que encontram-se em situação de tensão, como por exemplo no caso de sequestros, prisão domiciliar ou situações de abuso, por exemplo. Nessas situações, o subconsciente é capaz de fazer com que a vítima estabeleça uma conexão mais pessoal e emocional com o agressor com o objetivo de preservar a vida” (Fonte: Tua Saúde)
Ou seja, Kate havia sido manipulada psicologicamente pelo Martin. E ele, na verdade, só queria se proteger — era cilada, Bino.
A série romantiza uma relação que era totalmente abusiva e criminosa. E ela faz isso quando não mostra as privações que Kate passou no cárcere privado. O cativeiro (porão) está quase sempre limpo. Em alguns momentos da série, Kate parece estar com a consciência alterada, o que não é explicado na história.
A série te induz a ter mais raiva da Jeanette do que de Martin (que é o maior vilão da história). Ao final, o Martin tem a intenção de cometer suicídio para se “redimir” do que fez, o que também contribui para uma relativização de tudo o que aconteceu e romantizar o sequestrador.

A série banaliza a violência contra a mulher:
Em um momento da série, Jeanette leva um soco no olho do namorado, depois que ele ouve os boatos de que ela teria alguma relação com o sequestro da Kate. Esse soco não é problematizado em nenhum momento da série. O pai e o irmão da Jeanette vão tirar satisfação com o namorado, mas é tudo muito light diante da gravidade do que ocorreu. Eles não vão à polícia. Depois, Jeanette ainda volta a namorar o agressor/boy lixo, como se o soco não tivesse sido nada e fosse justificável. Por ser uma série voltada ao público adolescente/ jovem adulto, esse “detalhe” se torna ainda pior.
A mensagem da série é péssima:
Principalmente por conta da última cena da série, que eu odiei, uma das mensagens que ela passa é de que “toda fake news tem um fundo de verdade”. É a ideia de que vale a pena acusar alguém sem provas. Diante do momento que estamos vivendo, em que mentiras são usadas para destruir a reputação de pessoas, é bem irresponsável fazer isso.
Tanto Jeanette quanto Kate e Mallory são mentirosas. Kate acusou Jeanette sem provas, deu falso testemunho, e tudo bem (nada acontece com ela, pelo menos nessa primeira temporada). Mallory — que era amiga de Jeanette no passado — também deixa Jeanette ser acusada sem provas, e mesmo quando teve oportunidades de esclarecer parte da história, ela não fez isso. A série dá a entender, ao final, que Jeanette é uma psicopata (sendo que a construção da personagem não dava a entender isso). No fundo, valeu a pena ela ter sido acusada injustamente. Afinal, conseguiu se tornar famosa e popular. Mesmo que pelos motivos errados.

FIM DOS SPOILERS
A série foi renovada para uma segunda temporada, e eu fico me perguntando: pra quê?
Sinceramente, acho que os produtores deveriam fazer um minidocumentário, assim como foi feito com 13 reasons why (Netflix) — que mostrou uma cena de suicídio muito pesada — , explorando algumas questões que ficaram muito mal resolvidas nessa temporada, e que podem, sim, induzir o público mais jovem a relativizar uma série de comportamentos e violências.
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